terça-feira, 8 de maio de 2012

“Ata-me”: a negação do corpo dócil no filme de Pedro Almodóvar1

Rafael Nacif de Toledo Piza 2

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

RESUMO


Para Foucault, “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode
ser transformado ou ape rfeiçoado”. Em “Ata- me”, Almodóvar apresenta uma história de
amor “pervertida” pelo desejo incontrolável de Ricky, doente mental, cuja obsessão é casarse
e constituir família com Marina, ex-atriz pornô em transição para uma carreira no
“cinema sério”. Este artigo, primeiro resultado de uma pesquisa em andamento no âmbito
do Mestrado em Comunicação da FCS/UERJ, busca analisar “Ata-me”, de Almodóvar, à
luz do conceito de corpos dóceis de Foucault, valendo-se de outros autores como Marcel
Mauss, Jürgen Müller, Wilton Garcia e Denise Oliveira.
Palavras-chave: corpos dóceis, cinema espanhol, bondage, Almodóvar.
Introdução
Uma das marcas dos meios de comunicação de massa (MCM) na
contemporaneidade é a representação cada vez mais explícita do corpo, em geral com vistas
a promover o consumo de produtos dietéticos, artigos relacionados a academias de
ginástica, bem como os programas de fitness destas academias e intervenções cirúrgicas
com finalidades estéticas. A submissão do corpo aos ideais de beleza padronizados e
difíceis de serem alcançados pela média da população também está presente no cinema. Os
corpos na tela, desmaterializados, virtualizados em imagem, comunicam ao espectador a
1 Trabalho submetido ao Seminário de Temas Livres em Comunicação.
2 Rel. Públicas, Mestrando em Com. pela FCS-UERJ. Prof. da Pós-Grad. em Gestão da Cultura da Universidade Estácio
de Sá (RJ). Org. do livro “Destinos da cidade – comunicação, arte e cultura”, com o Prof. Ricardo Ferreira Freitas
(EdUERJ, 2005). Co-autor, também com o Prof. Ricardo Freitas, do artigo “Sobre condomínios fechados: as fronteiras do
lazer nos espaços contemporâneos” in Nízia Villaça; Fred Goés (Org.). “Nas fronteiras do contemporâneo - território,
identidade, arte, moda, corpo e mídia”, Rio de Janeiro, FUJB/Mauad, 2001, pp. 36-44. E-mail: rafaelnacif@uol.com.br
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necessidade de moldar-se aos padrões vigentes na moda, que, em geral, requerem uma boa
dose de uma genética generosa com rigorosos programas alimentares e de condicionamento
físico.
Este artigo é o primeiro resultado de uma pesquisa em andamento sobre a
representação da marginalidade no cinema de Almodóvar, no âmbito do Mestrado em
Comunicação da FCS/UERJ. Seu objetivo é analisar “Ata- me”, do diretor espanhol, com
base no conceito de corpos dóceis, de Foucault (1987). A submissão do corpo é de fato um
dos mais eficientes instrumentos de controle social. Observar como o diretor espanhol se
utiliza de uma metalinguagem crítica, recorrendo à mitologia de Hollywood, especialmente
à estrutura clássica de uma história de amor, e subverte-a, é uma maneira de identificar a
persistência de uma “contracultura” global de resistência às representações estigmatizadas
de certas minorias. O corpo invisível do outsider ganha visibilidade em Almodóvar. E este
corpo nada mais é do que o registro orgânico de estilos de vida, em geral, resistentes ao
status quo.
Almodóvar e o cinema espanhol
Lançado em 1990, “Ata-me” foi o nono filme concebido e dirigido por Pedro
Almodóvar, renomado diretor espanhol cuja obra teve início dezesseis anos antes com
“Film político”, lançado em 1974. Reconhecido como um dos mais criativos e polêmicos
diretores cinematográficos contemporâneos, Almodóvar apresenta aos espectadores de
cinema uma obra baseada fortemente na representação dos desvios humanos. A quase
totalidade de seus personagens apresenta algum traço comportamenta l desviante, dentro do
conceito da Sociologia do Desvio, importante segmento desta área de conhecimento , cujos
principais autores de referência são Becker, Goffman e Elias3. Este aspecto atravessa toda a
filmografia do diretor e constitui realmente um tema de seu interesse. Assuntos fortes e
3 BECKER, Howard. Outsiders – studies in the sociology of deviance. Nova Iorque: The Free Press, 1963.
GOFFMAN, Erwin. Stigma – notes on the management of spoiled identity. Nova Iorque: Simon & Schuster Inc., 1963.
ELIAS, Norbert, SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
3
difíceis como incesto, bissexualidade, pedofilia e distúrbios mentais compõem, ao lado de
outros tópicos mais comuns nos meios de comunicação de massa de hoje, como
homossexualidade, violência e uso de drogas, um retrato crítico da sociedade espanhola,
passível de transposição para a maioria das comunidades urbanas ocidentais.
Nascido em Calzada de Calatrava (Ciudad Real, La Mancha), em 24 de setembro de
1949, Pedro Almodóvar mudou-se para Madri aos 16 anos. Conseguiu trabalho na
Companhia Telefônica Nacional, e, foi então, que pôde economizar dinheiro para comprar
uma câmera Super 8. Integrou a movida madrileña, expressão da contracultura na Madri
dos anos 70, e produziu uma dezena de curtas- metragens. No fim da década de 70, produziu
seu primeiro longa protagonizado por Carmen Maura, “Folle... folle... fólleme Tim! ”
(1978), seguido de “Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón” (1980)4. Almodóvar
conseguiu chamar cada vez mais a atenção da crítica internacional, especialmente depois do
lançamento do filme “Maus hábitos” (Entre tinieblas, 1983)5, sobre um grupo de freiras
rebeldes. Consagrou-se definitivamente com a conquista do Oscar de melhor roteiro
original para “Fale com ela”, em 2002.
Almodóvar é herdeiro de uma história que começou há 110 anos atrás, em maio de
1896, quando chegou à Espanha o cinematógrafo dos irmãos Lumière6. A primeira película
espanhola foi filmada por Eduardo Jimeno, “Salida de misa de doce del Pilar de Zaragoza ”
(1897). O primeiro filme ficcional foi feito por Fructuoso Gelabert (“Riña en un café ”,
1897). Desde as primeiras produções espanholas, ficou clara a dificuldade de
desenvolvimento do cinema espanhol, que, abundante em criatividade, carecia de base
industrial, como aconteceu no século XX na maioria das cinematografias periféricas do
mundo. Apesar disso, existiam mais de mil salas de exibição no país antes da Primeira
Guerra Mundial. Durante a guerra, foram produzidos mais de 200 filmes na Espanha. Ao
fim do conflito, a Europa recuperou-se, ao contrário da economia espanhola que entrou em
crise. Embora hajam personalidades destacadas no universo do cinema espanhol, não há
4 “Pedro Almodóvar” (2006). Internet Movie Database. Consultado em 15/05/2006, 10h30.
http://www.imdb.com/name/nm0000264.
5 Ibid.
6 “Cine español” (2006). Enciclopedia Microsoft Encarta Online 2005. Consultado em 15/05/2006, 11h00..
http://mx.encarta.msn.com/encyclopedia_761586869/Cine_espa%C3%B1ol.html
“Spain” (2006). Encyclopædia Britannica. Consultado em 15/05/2006, 11h30 de Encyclopædia Britannica Premium
Service http://www.britannica.com/eb/article-70325
4
continuidade o suficiente para fazer frente à produção norte-americana. Durante muitos
anos, as principais temáticas dos filmes espanhóis reduziram-se a representações da
tradição literária, dos costumes folclóricos e de episódios históricos diversos. Nos anos 30,
tentou-se organizar uma indústria cinematógráfica espanhola. Luis Buñuel abriu o estúdio
Filmófono, que produzia filmes comerciais de qualidade. Os filmes mais bem sucedidos
tratavam das temáticas anteriormente citadas. Durante a Guerra Civil Espanhola , a indústria
sofreu bastante e a maioria das produções tinham fins de propaganda. Com o começo da
ditadura de Franco em 1939, o cinema espanhol converteu-se numa indústria de apoio ao
regime sujeita a uma rígida censura prévia. Buñuel exilou-se no México. Nesta época, a
produção voltou-se para produtos tipicamente de consumo (comédias e musicais).
No pós-guerra, sentiu-se a necessidade de produções distintas, como as realizadas
por Edgar Neville. Na década de 50, graças às influências do neorealismo italiano,
começam a surgir obras realmente críticas que conseguem sobreviver à censura. Esses
filmes não tiveram tanto êxito comercial, no entanto: “Surcos” (1951), de José Antonio
Nieves Conde, “Bienvenido Mr. Marshall” (1952), de Luis García Berlanga entre outros.
Uma película de grande sucesso na época foi “Marcelino Pan y Vino ” (1954), de Ladislao
Vajda.
Em 1947, é criado o Instituto de Investigações e Experiências Cinematográficas que
transformou-se depois na Escola Oficial de Cinematografia. Muitos diretores formaram-se
nas aulas desta escola e depois, transformaram-se em professores, como Berlanga, Bardem,
Saura, Miró, Erice entre outros. Outra linha de diretores importantes surgiu da Escola de
Barcelona, que se caracterizou por sua proposta de estruturas narrativas abertas e
inovadoras. Entre os que ainda atuam hoje, estão Gonzalo Suárez e Vicente Aranda.
Durante a transição política e posteriormente, iniciou-se um estilo de cinema
reflexivo sobre a Guerra Civil, o pós-guerra e a vida durante o franquismo. Um bom
exemplo é o filme vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro “Volver a empezar”
(1982), de José Luis Garci, como também “El año de las luces” (1986), de Fernando Trueba
e “¡Ay, Carmela!” (1990), de Carlos Saura.
Durante a década de 80, o cinema espanhol não obteve tantos êxitos comerciais,
embora seus autores estivessem trabalhando uma temática diferente da tradicional no país.
5
Uma das razões apontadas para esse desempenho fraco em termos de mercado internacional
era a dependência excessiva de incentivos governamentais. A distribuição estrangeira foi
muito reduzida, não obtendo fôlego para competir com o crescimento exponencial do
produto norte-americano.
Na esteira do movimento contracultural da década de 80, principalmente em Madri
e Barcelona, surgiu um cinema provocador, com apelo minoritário, a princípio, mas que,
posteriormente, demonstrou grande potencial comercial. Nesta corrente, destacaram-se
Pedro Almodóvar e, numa linha mais convencional, Fernando Colomo. Em Barcelona,
entre as figuras mais notórias encontramos Bigas Luna com “Bilbao” (1978), “Las edades
de Lulú” (1990) e “Jamón, jamón” (1992).
Recentemente, surgiram novos realizadores interessados em atingir o grande
público com um repertório temático mais amplo e uma narrativa mais ágil. Juanma Bajo
Ulloa (“Alas de mariposa”, 1991, “La madre muerta”, 1993, e “Airbag”, 1997), Alex de la
Iglesia (“Acción mutante”, 1992, “El día de la bestia”, 1995, e “La comunidad”, 2000),
Julio Medem (“Vacas”, 1992, “La ardilla roja”, 1993, e “Los amantes de círculo polar”,
1998) e Alejandro Amenábar (“Tesis”, 1996, e “Los otros”, 2000) são alguns deles.
O corpo (in)dócil de Marina
“Ata- me”, protagonizado por Victoria Abril e Antonio Banderas, conta a história de
Ricky, um jovem com distúrbios mentais, que após ser liberado do hospício onde esteve
internado, sai em busca de uma ex-atriz de cinema pornô e viciada em drogas, Marina, com
quem manteve relações sexua is em uma de suas fugas do manicômio. Ricky ama Marina e
decide fazê-la apaixonar-se por ele para que constituam família, tenham filhos e levem uma
vida normal. Entretanto, ele usa métodos nem um pouco convencionais para alcançar seus
objetivos. Rapta a atriz e a mantém presa em seu próprio edifício, amarrando-a e a
algemando. Ao mesmo tempo que usa de violência para submetero corpo de Marina, Ricky
procura manter seu bem-estar ao sair para comprar remédio para a dor de dente dela ou para
conseguir entorpecentes que façam efeito (uma vez que a atriz consumiu heroína, o que
criou resistência em seu organismo à ação de analgésicos) e eliminem a dor que Marina
6
sente.
A amarração do corpo de Marina sofre uma transição no filme. Inicialmente, contra
sua vontade, ao atá- la, Ricky pretende fazer com que Marina submeta-se aos seus planos,
conheça-o melhor e aceite a sua proposta de casamento e filhos. O corpo de Marina, alvo
do desejo de Máximo, velho cineasta que a dirige no filme trash “Terror à meia-noite”, é
docilizado por Ricky. Marina deve amá- lo mesmo assim.
Ao dissertar sobre a história das prisões em Vigiar e punir, Foucault dedica uma
parte do livro à análise das disciplinas. O filósofo cria, então, o conceito de corpos dóceis,
partindo do conceito de “homem máquina” de La Mettrie e passando pelo desenvolvimento
das técnicas que permitem o controle minucioso do corpo a partir do séc. XVII. Foucault
refere-se, inicialmente, ao corpo do soldado como síntese da noção de corpo dócil; as
marchas, as manobras, o porte do soldado compõem uma retórica corporal da honra. Na
segunda metade do séc. XVIII, há uma mudança: o soldado torna -se algo que se pode
fabricar a partir de uma coerção calculada que molda hábitos autômatos. Para Foucault, “é
dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado
ou aperfeiçoado”7. O corpo de Marina demonstra, em “Ata-me”, uma retórica corporal do
desejo, e aí está a sua docilidade, já que a perfeição de suas formas e o seu cultivo
demonstram a sujeição a uma ordem de utilidade do corpo sexual para o prazer
(hedonismo).
O corpo de Marina aparece na tela como um corpo natural, mas sabemos que ele
não é senão resultado de um grande esforço de Victoria Abril e da fotografia genialde José
Luis Alcaine. O corpo de Marina é uma composição de Almodóvar e de Victoria. Seus
gestos, sua forma de andar, sua sensualidade, todo e cada movimento é intencional, é
dirigido. O corpo de Victoria docilizou-se no corpo de Marina.
O corpo de Marina, atado ao leito onde ma is tarde Ricky a possuirá, é um corpometáfora.
Poderia ser interpretado, num primeiro momento, como um símbolo da
tradicional sujeição da mulher ao homem nas relações amorosas. Segundo Jürgen Müller
(2002, p. 734), autor de “Cine de los 80”, esta foi uma acusação feita por críticos
superficiais na época em que o filme foi lançado mundialmente. Tais críticos acusaram
7 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – o nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 118.
7
Almodóvar de sexismo por retratar uma mulher que, ao fim da história, cede às pressões
“violentas” de Ricky. Müller não concorda com essa interpretação. O autor coloca que, ao
contrário, quem realmente precisa de ajuda o tempo todo no filme é Ricky e não Marina,
cuja vida já está, de alguma maneira, encaminhada.
Bondage: uma técnica corporal
Em “Sociologia e Antropologia”, Marcel Mauss explica a noção de técnica corporal
como a forma como o homem, “sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabe
servir-se de seu corpo” Para ele, “o caminhar, a natação” [...] são específicas de sociedades
determinadas” 8. A amarração do corpo de Marina remete, desde o início do filme, a uma
prática erótica underground chamada bondage (inclusive fonte de inspiração para a
coreografia de Deborah Colker, “Nó”). Segundo esta prática, relacionada entre as parafilias
(ou comportamentos sexuais nos quais a fonte de excitação não está na cópula mas em
outro objeto, sendo ele não danoso à prática sexual para que seja considerado parte da
psique “normal”), a fonte de desejo é o ato de amarrar e imobilizar o parceiro 9. De certo
modo, a amarração de Marina é uma caricatura que Almodóvar desenha dos laços
românticos tradicionais. Müller cita algumas cenas bem reveladoras do humor cáustico de
Almodóvar quanto ao tema. Em uma delas, Marina aparece assistindo a um trecho da “A
noite dos mortos vivos”. Em outra, Marina e Ricky estão assistindo a um comercial de
planos de previdência privada e comentam sobre suas idéias para o futuro como se fossem
um casal comum.
A técnica corporal do bondage atrai membros de ambos os sexos e de todas as
orientações sexuais10. Entretanto, ho mens gays que participam da subcultura dos
leathermen estariam entre o primeiro grupo a fornecer pistas sobre seus gostos em relação a
bondage em público nas sociedades ocidentais contemporâneas. Os leathermen inspiraram-
8 MAUSS, Marcel. Sociología e Antropologia. São Paulo, EPU/EDUSP, 1974, p.211-212.
9 “Parafilia” (2006). Wikipédia (português). Consultado em 15/05/2006, 11h40. http://pt.wikipedia.org/wiki/Parafilia
10 “Bondage (BDSM)” Wikipedia (inglês). Consultado em 15/05/2006, 11h40.
http://en.wikipedia.org/wiki/Bondage_%28BDSM%29
8
se na cultura de motociclistas que emergiu após a segunda grande guerra. Enquanto os
motociclistas não eram idenficados como homossexuais, os leathermen admiravam sua
masculinidade, tenacidade e propensão a ignorar a moral dominante. Conseqüentemente,
eles adotaram o estilo de se vestir dos motociclistas, particularmente o uso de couro preto.
Enquanto para os motociclistas isso tinha utilidade, ao prover calor e proteção durante as
viagens, os leathermen utilizaram esse visual mais como um fashion statement e como
fetiche, já que em sua grande maioria, não guiavam motocicletas. Alguns exemplos
clássicos de produção cultural ligada à prática do bondage são: o romance “Histoire D’O”
(1954), de Pauline Réage; o trabalho artístico de Robert Bishop; os livros de E. F.
Campbell; a trilogia “Bela adormecida” de Anne Rice; revistas de bondage dos anos 70; e
poemas homoeróticos de Effie Elisa Ross.
A técnica corporal do bondage pode ser dividida em cinco categorias principais:
· bondage que limita os movimentos corporais (corda, algemas, cintos, arreios);
· bondage que separa partes do corpo;
· bondage que amarra o corpo a outros objetos (cadeiras, camas etc.);
· bondage que suspende o corpo;
· bondage que embrulha todo o corpo ou parte dele com tecido ou plástico.
Entre as razões que justificariam a prática do bondage estão as seguintes:
· a mais citada é uma liberdade mental de inibições e responsabilidade, já que os
praticantes, de alguma forma, desistiram do controle da situação sexual que se
seguirá; isto é geralmente chamado de troca de poder;
· alguns gostam da sensação tátil de restrição, isto é, a sensação de pressão;
· alguns gostam da sensação de desamparo, alguns lutam agressivamente contra o que
os ata, particularmente quando estimulados sexualmente; há alguns nesta categoria
que brincam com jogos de bondage sem que estes contenham um componente
sexual significante;
· para intensificar a experiência de controle do orgasmo ou negação do orgasmo;
· alguns tem prazer com a degradação simbólica (mais rara); pessoas que gostam de
interpretar papéis de prisioneiros ou doentes mentais se enquadram melhor nesta
categoria;
9
· interesse fetichista na mecânica do bondage, com particular interesse no
equipamento utilizado; algumas dessas pessoas estão interessadas no visual, na
sensação e no cheiro dos apetrechos de couro e borracha; outras são fascinadas pela
relação entre a geometria do nó, os graus de liberdade e os sentimentos sugeridos.
Considerando todas essas razões que motivam a prática do bondage, podemos
analisar que, em “Ata- me”, embora, inicialmente, Ricky utilize as cordas para evitar que
Marina fuja enquanto ele dorme, já que ela poderia roubar- lhe as chaves do apartamento,
com o desenrolar da história, aquele ritual de amarração ganha fortes contornos eróticos, à
primeira vista, e metafóricos numa análise um pouco mais atenta. A amarração nos remete
a vários aspectos, então, sendo eles:
1. docilização do corpo de Marina;
2. jogo de poder entre homem e mulher;
3. laços afetivos que unem um casal tradicional e que, segundo os cânones religiosos,
deve permanecer junto “até que a morte os separe”;
4. o cuidado na amarração, por meio do uso de uma técnica específica que preserva o
corpo da dor e proporciona menos desconforto à Marina;
5. o ato de amarração como um ato de amor.
Levando em conta a afirmação de Mauss sobre o aspecto conjuntural das técnicas
corporais, podemos inferir que em “Ata- me” Almodóvar objetiva na amarração a rigidez
dos laços matrimoniais, subvertendo seu sentido pejorativo e potencializando a sua carga de
redenção, uma vez que ambos os personagens, de certa forma, apresentavam uma trajetória
desviante até que se encontraram e, o fim do filme expressa mesmo um otimismo e até uma
incorporação dos desvios, ou a sua suavização, graças ao envolvimento emocional de Ricky
e Marina. O amor, mesmo numa história “pervertida” ou “outsider”, purga o passado de
desvios dos personagens. É assim que Almodóvar subverte, a partir da estrutura clássica de
um grande filme de amor de Hollywood, essa grande máquina de produção de imaginários
padronizados e padronizantes. Eis o mérito do diretor espanhol.
10
Considerações finais
Em “Cinema dos anos 90”, organizado por Denilson Lopes, Wilton Garcia, ao
analisar “Carne trêmula” escreve:
Há uma carne que treme entre o afeto e a subjetividade do corpo. Uma poética
fílmica inscreve o corpo no trabalho do cineasta espanhol Pedro Almodóvar
com suas variantes polifônicas, as quais intensificam um tecido complexo de
informações visuais, verbais e sonoras. A versatilidade das imagens do corpo,
exposta pela lente da câmara almodovariana, implica a (re)apropriação dos
dispositivos de enunciação presente no cinema contemporâneo. Essa
recorrência à configuração plástica da visualidade corporal reflete uma
argumentação (inter)textual e crítica deste artista, quando interpela aspectos
fronteiriços entre arte, cultura, subjetividade e poética. (2005, p. 241).
Em “Ata- me”, Almodóvar apresenta uma história de amor “pervertida” pelo desejo
incontrolável de Ricky, doente mental, cuja obsessão é casar-se e constituir família com
Marina, ex-atriz pornô em transição para uma carreira no “cinema sério”. Para tanto, Ricky
utiliza-se de um mecanismo nada natural no processo de sedução: mantém Marina presa em
seu próprio prédio e amarra-a à cama. A amarração, daí o título “Ata-me”, serve como
metáfora da docilização do corpo de Marina, que se transfigura ao fim da história,
especialmente a partir da cena em que Marina pede à Ricky que a amarre uma vez que ela
teme fugir do cativeiro se deixada solta. O corpo dócil de Marina, a mulher-objeto de
desejo de Ricky, mantém sua passividade até o momento em que opta pela amarração.
Marina quer estar atada à Ricky. Seu corpo não está mais submetido (no sentido
foucaultiano) , então, uma vez que ela escolhe esta posição.
Ricky faz com que Marina submeta-se a ele. Marina se apaixona e subverte a
relação. De objeto de dominação, passa a mulher apaixonada e decidida a enfrentar todas as
dificuldades derivadas de manter um relacionamento com uma pessoa com distúrbios
psiquiátricos. O corpo dócil de Marina liberta-se por meio das amarrações de Ricky, e é
assim que ela atinge o êxtase nos braços de seu “seqüestrador-amante-futuro- marido”. O
corpo dócil então, da submissão passa ao comando de seu próprio destino.
11
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